quarta-feira, 1 de junho de 2011

Livro A Peregrina - John Bunyan (2ª Parte)


Imagem cedida por:http://caminhodesantiago.blogspot.com/2005/04/villar-de-mazarife.html


CAPÍTULO 2

Cristiana recebe a visita de duas vizinhas. Temerosas, procuram dissuadi-la de marchar; porém Misericórdia decide-se a acompanhá-la.

A ponto de partir, estavam Cristiana e seus filhos, quando duas vizinhas chamaram à porta.
—Entrai— disse Cristiana—, se vindes em nome de Deus.
As mulheres ficaram atônitas; não estavam costumadas a ouvi-la empregar semelhante linguagem. Ainda assim, entraram, e ao ver que sua vizinha estava se arrumando para marchar-se:
—O que significa isto?— exclamaram a única voz.
—Estou me preparando para uma viagem— respondeu Cristiana, dirigindo-se à mais velha das duas, que se apelidava Temerosa (esta era filha do sujeito que encontrou a Cristiano no morro Dificuldade, e quis dissuadi-lo a retroceder por temor dos leões.
TEMEROSA— Para que viagem?
CRISTIANA— Para seguir a meu marido— e novamente se encheram seus olhos de lágrimas.
TEMEROSA— Espero que não farás tal coisa. Pensa em teus filhos e não sejas néscia.
CRISTIANA— Meus filhos me acompanharão. Nem um deles quer ficar.
TEMEROSA— Quem te colocou na cabeça estas idéias extravagantes?
CRISTIANA— Oh, amiga minha! Se soubesses o que eu, não duvido que irias comigo.
TEMEROSA— Vejamos! Que novo saber é este, que te induz a te indispor com tuas amigas, e sair a caça de quimeras?
CRISTIANA— A saída de meu marido deixou-me muito aflita e, sobre tudo, desde que atravessou o rio fiquei profundamente angustiada. O que mais me inquieta é a diferença de minha conduta para com ele, enquanto gemia sob o peso de sua carga. Além disso, sinto agora a mesma resolução que o meu marido sentia, e de qualquer jeito quero começar minha peregrinação. Ontem noite sonhava que o via. Tomara estivesse com ele! Mora já em presença de seu Rei; assenta-se com ele e come a sua mesa. É companheiro agora de seres imortais, e o palácio mais luxuoso do mundo parece-me um chiqueiro em comparação da morada que lhe foi proporcionada. O mesmo soberano me fez chamar com promessas de uma acolhida carinhosa, se acudo a Ele. Seu mensageiro acaba de sair, tendo me trazido uma carta de convite.
Ato seguido sacou a carta e a leu, agregando:
—Então, o que opinas disto?
TEMEROSA— Que teu marido foi um bobalhão, por ter-se aventurado tão temerariamente, e que tu não ficas para trás. Acaso não ouviste falar das dificuldades com que tropeçou teu marido logo que deu o primeiro passo por aquele caminho? Disto, os nossos vizinhos Obstinado e Flexível podem dar fé, pois o acompanharam, até que, como homens inteligentes, tiveram medo de avançar mais. Avante, ouvimos contar os encontros que teve com os leões, com Apolião, com a Sombra-da-Morte e muitas outras coisas. Não deves também não esquecer do que lhe aconteceu na Feira da Vaidade; e se ele, que era homem, passou por tantos apuros, que podes fazer tu que não és senão uma débil mulher? Repara em que estes quatro anjinhos são teus filhos, tua carne e teus ossos. Ainda que não estimes tua vida, tem compaixão do fruto de teu corpo e fica em casa.
Mas Cristiana respondeu nos seguintes termos:
—É inútil quanto digas, vizinha. Eis que me é oferecida uma ocasião oportuna para alcançar as riquezas eternas, e seria realmente néscia se desprezasse tal oportunidade. Embora me fazes lembrar as penas e dificuldades que provavelmente deverei aturar no caminho, estas, longe de me desanimar, convencem-me de que tenho razão. Antes que o doce tem de vir o amargo, e isso mesmo realça a doçura daquilo. Portanto, já que não vens em nome de Deus, como disse, rogo-te que te retires e me deixes em paz.
Depois de proferir algumas injúrias, dirigiu-se Temerosa a sua companheira:
—Vamos, amiga Misericórdia —disse—; já que rejeita estes conselhos e despreza a nossa companhia, deixemo-la.
Porém ela não estava disposta a abandonar tão facilmente sua vizinha, por duas razões: primeira, por quanto sentia um amor entranhável para Cristiana e dizia para sim: "Se está decidida a marchar, a acompanharei um pouco e a ajudarei no que possa". Além disso, não se sentia muito tranqüila com respeito a sua própria alma, e as palavras de Cristiana a haviam impressionado bastante. Por isso refletia para sim deste modo:
—Falarei com ela mais detidamente a sua própria alma, e se encontro que não tem padecido nenhuma alucinação, a acompanharei.
Assim determinada, replicou a sua vizinha:
—Espero que não tomes a mal que eu fique; mas já que Cristiana está se despedindo de seu país, tenho desejos de acompanhá-la um pouco, já que tão formosa está a manhã.
Guardou, porém, para ela mesma a sua segunda razão.
TEMEROSA— Vamos! Vejo que tu também estás para loucuras; porém antes que seja demasiado tarde, olha bem o que fazes. O perigo, com cuidado, disse o outro; e quem busca o perigo, nele perece. Adeus.
Dito isto, separaram-se; Cristiana, para empreender sua viagem, e Temerosa, para voltar a sua casa. Uma vez ali, mandou chamar umas quantas vizinhas suas, que eram as senhoras Obcecada, Desconsiderada, Leviandade e Ignorância. Quando chegaram, as comunicou do acontecido com Cristiana e de sua projetada viagem.
—Tendo pouco a fazer nesta manhã —disse—, fui fazer uma visita a Cristiana. Ao chegar a porta chamei, segundo nosso costume, e me respondeu: "Se vens em nome de Deus, entra". Entrei, pois, sem suspeitar que houvesse novidade; porém a achei arrumando-se para sair do povo com seus filhos. Perguntei-lhe o que significava aquilo e, em resumidas contas, disse-me que era seu ânimo ir em peregrinação como fez seu marido. Contou-me também um sonho que teve, e como o Rei do país onde agora habita seu esposo tinha-lhe enviado uma carta convidando-a a dirigir-se para lá.
IGNORÂNCIA— Como! Tu achas que irá?
TEMEROSA— Sim que irá, aconteça o que acontecer; e te direi por que assim o creio. O que para mim era uma argumento poderoso para persuadi-la a abandonar a empresa (ou seja, as penas e fadigas que certamente achará no caminho), é para ela um grande incentivo para empreender a viagem, pois me disse, palavra por palavra: "Antes que o doce tem de vir o amargo, e isto mesmo realça a doçura daquilo".
OBCECADA— Veja uma mulher cega e louca! E não escarmentou com as aflições de seu marido? De minha parte, estou segura que se ele estivesse novamente aqui se contentaria com salvar a pele e não correria tantos riscos por nada.
A senhora Desconsiderada tomou a palavra, dizendo:
—Vão embora quando queiram do povo loucos tão fantásticos! Boa liberação, digo eu. Embora ficasse, se continuar com essas idéias, ninguém poderia viver tranqüilamente ao seu lado, pois ou estaria melancólica e irascível com os vizinhos, ou falaria de assuntos que ninguém de bom juízo pode aturar. Eu os prometo que não chorarei sua partida: que vá em boa hora, e venham outros melhores em seu lugar. O mundo degenerou muito desde que abundam estes contumazes idiotas.
Depois agregou a senhora Leviandade:
—Vamos, deixemos estes assuntos e falemos de outra coisa. Ontem estive em casa da senhora Sensualidade, onde nos divertimos muito. Ali estavam a senhora Amor-Carnal com outras três ou quatro, além do senhor Luxurioso, a senhora Impureza e outros. Nos entretiveram com música e danças e tudo quanto podia construir nosso prazer. Certamente a dona de casa possui uma educação esmerada e o senhor Luxurioso é também um finíssimo cavalheiro.
FONTE: Livro a Peregrina de John Bunyan

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