domingo, 2 de outubro de 2011

Conhecendo a Bíblia como os Gigantes Puritanos.

Créditos a: http://valecristao.com.br/estudo/biblia_texto.html


Aquele que quiser interpretar corretamente a Bíblia, deve ser homem dotado de espírito reverente, humilde, dado à oração, disposto a aprender e obediente; de outro modo, sem importar o quanto a sua mente esteja "saturada com conceitos", ele jamais chegará a compreender as realidades espirituais.

Passemos agora a estudar a abordagem Puritana quanto à tarefa da interpretação propriamente dita. Seus princípios normativos podem ser sumariados por meio dos seguintes pontos:

1 - Interprete as Escrituras literal e gramaticalmente. Os reformadores — opondo-se à depreciação medieval do significado "literal" das Escrituras, a qual defendia os vários sentidos "espirituais" (alegóricos) — tinham insistido que o sentido literal, ou seja, o sentido tencionado, natural e gramatical, é o único que as Escrituras têm; sendo de acordo com esse sentido que devemos procurar fazer uma exposição da Bíblia, dando cuidadosa atenção ao contexto e à gramática de cada afirmação. Os Puritanos concordavam plenamente com isso.

Se você quiser compreender o verdadeiro significado... de algum trecho controvertido, então examine com cuidado a coerência, o objetivo e o contexto do mesmo."

Nelas [as Escrituras], não há outro sentido além daquele contido nas palavras que materialmente lhe constituem... Na interpretação dos pensamentos de quem quer que seja, é mister que as palavras ditas ou escritas sejam corretamente compreendidas; e isso não poderemos fazer imediatamente, a menos que entendamos a linguagem na qual esse alguém fala, como também as expressões idiomáticas dessa língua, com o uso comum e a intenção de sua fraseologia e expres¬sões.. . Em quantos erros, equívocos e perplexidades muitos expositores têm sido lançados, por causa da ignorância desses idiomas originais... especialmente aqueles que aderem, teimosamente, a uma só tradução... o que pode ser demonstrado por exemplos... incontáveis.

Naturalmente, há lugares, nas Escrituras, onde é usada uma linguagem alegórica. Todos os Puritanos consideravam o livro Cantares de Salomão como um desses casos típicos, e James Durham oferece-nos algumas interessantes observações sobre essa questão:

Admito que há aqui um sentido literal; mas afirmo que o sentido literal não é... aquilo que primeiro se deve buscar, como nas Escrituras históricas... e, sim, aquilo que tem um sentido espiritual... transmitido por meio dessa linguagem alegórica e figurada; esse é o verdadeiro sentido desse livro de Cantares... pois um sentido literal (conforme foi definido por Rivet, com base em certos eruditos) é aquele que flui de tal lugar das Escrituras, conforme tencionou o Espírito nas palavras, usadas literal ou figuradamente, e deve ser depreendido de todo o complexo de expressões... conforme é evidente na exposição das parábolas, das alegorias e das Escrituras figurativas.
Contudo, observou Durham que isso é algo bem diferente da alegorização ilegítima, da qual os intérpretes medievais se fizeram culpados. Porquanto "há uma imensa diferença entre a exposição alegórica das Escrituras e a exposição das Escrituras alegóricas". Durham só pregava alegoricamente quando tinha razão para pensar que ele estava expondo alguma alegoria bíblica.

2 - Interprete as Escrituras de modo consistente e harmônico. Se a Bíblia é a Palavra de Deus, a expressão da mente divina, tudo quanto ela diz tem de ser verdadeiro, não podendo haver qualquer contradição real entre as suas várias partes. Logo, ficar explorando contradições aparentes, assevera Bridge, mostra uma grande irreverência. E prosseguiu Bridge:

Vocês sabem o que sucedeu a Moisés, quando ele viu dois homens brigando, um egípcio e outro israelita; ele matou o egípcio. Mas quando viu dois hebreus brigando, então ele quis apartá-los, pois eram irmãos. Mas por que fez isso, não foi por ser ele um homem bom e afável? O mesmo sucede no caso de um crente de coração afável. Quando vê a Bíblia lutando com um egípcio, um autor pagão ou um apócrifo, ele vem e mata o pagão... o egípcio ou o apócrifo; mas quando vê dois textos bíblicos em oposição (aparente, mas não na verdade), então diz: Oh! estes são irmãos e podem ser reconciliados; esforçar-me-ei para reconciliar um ao outro. Mas quando alguém tira proveito das aparentes diferenças das Escrituras, para dizer: Vocês estão vendo as contradições que há neste livro, ao mesmo tempo que não procura reconciliá-las, isso prova toda a corrupção da natureza humana, que se manifesta sob a forma de malícia contra a Palavra do Senhor? Portanto, cuidado com isso.

Esse é um pensamento chocante, bem como um diagnóstico acurado.
Visto que a Bíblia é a expressão unificada da mente divina, segue-se que "a regra infalível de interpretação da Bíblia é a própria Bíblia; portanto, quando há alguma dúvida sobre o verdadeiro e pleno significado de qualquer texto bíblico... esse significado deve ser buscado e conhecido por meio de outros textos que falam com maior clareza". Dois princípios derivam-se daí: (1) O que é obscuro deve ser interpretado à luz do que é claro. Disse Owen: "Nesse caso, a regra é que não damos qualquer sentido a uma passagem difícil ou obscura da Bíblia, senão aquele que é... harmônico com outras expressões e testemunhos claros. Pois, criar sentidos peculiares a partir de um texto, sem confirmação de outros textos, é uma prática curiosa e perigosa".'6 (2) As ambiguidades periféricas devem ser interpretadas em harmonia com certezas fundamentais. Logo, nenhuma exposição de qualquer texto estará certa se não "concordar com os princípios cristãos, com os pontos do catecismo estabelecidos no Credo, com a oração do Pai Nosso, com os Dez Mandamentos e com a doutrina das ordenanças".17 Esses dois princípios, juntos, formam a regra de interpretação comumente conhecida como "a analogia da fé", uma expressão tomada por empréstimo de Romanos 12.6 (provavelmente não com o sentido que lhe deu Paulo).

Estas duas regras dizem respeito à forma das Escrituras; e as próximas quatro têm a ver com sua matéria e conteúdo.

3       - Interprete as Escrituras teocêntrica e doutrinariamente. A Bíblia é um livro doutrinário; ela nos ensina sobre Deus e sobre as coisas criadas, em relação a Ele. Bridge ressalta isso desenvolvendo a ilustração bíblica de um espelho, usada por Tiago:

Quando você olha para um espelho, vê três coisas: o espelho, você mesmo e todas as outras coisas, pessoas, móveis ou quadros que estejam na sala. Assim também, quando examinamos a Bíblia... vemos ali verdades acerca de Deus e de Cristo. Deus é visto acima de tudo, Cristo também é visto; e vemos também a nós mesmos e o nosso rosto sujo; também vemos as criaturas que estão no mesmo aposento conosco...

Além disso, as Escrituras ensinam uma visão teocêntrica. Enquanto o homem caído vê a si mesmo como o centro do universo, a Bíblia nos mostra Deus no centro de tudo, e pinta todas as criaturas, incluindo o homem, em sua devida perspectiva — o homem existe por meio de Deus e para Deus. Um dos pontos onde os Puritanos mais podem ajudar-nos é na recuperação desse ponto de vista teocêntrico da Bíblia, que eles defendiam com tanta firmeza.

4       - Interprete a Bíblia cristológica e evangelicamente. Cristo é o verdadeiro tema das Escrituras: tudo ali foi escrito para testificar sobre Ele. Ele é "a súmula de toda a Bíblia, profetizada, tipificada, prefigurada, demonstrada, que se acha em cada página, quase em cada linha, pois as Escrituras são, por assim dizer, as roupas de nenê que envolvem o menino Jesus".19 Portanto:

A Tenha Jesus Cristo diante de seus olhos ao examinar a Bíblia, como o fim, escopo e substância da mesma. Que são as Escrituras, senão, por assim dizer, os "cueiros" espirituais do santo menino Jesus? (1) Cristo é a verdade e a substância de todos os tipos e sombras. (2) Cristo é a substância e a matéria do pacto da graça e de toda a sua administração; sob o Antigo Testamento, Cristo estava oculto; sob o Novo Pacto, Ele foi revelado. (3) Cristo é o centro e o ponto de convergência de todas as promessas; pois nEle as promessas de Deus acham o sim e o amém. (4) Cristo é a realidade simbolizada, selada e exibida nas ordenanças do Antigo e do Novo Testamentos. (5) As genealogias bíblicas são usadas para conduzir-nos à verdadeira linhagem de Cristo. (6)    As cronologias da Bíblia mostram-nos os tempos e épocas de Cristo. (7)   As leis bíblicas são nosso mestre-escola para levar-nos a Cristo: as leis morais, corrigindo; as leis cerimoniais, apontando. (8) O evangelho da Bíblia é a luz de Cristo, mediante a qual nós O ouvimos e O seguimos... as cordas do amor de Cristo, por meio das quais somos enlaçados a uma doce união e comunhão com Ele; sim, o próprio poder de Deus para salvação de todo aquele que crê em Cristo Jesus. Portanto, devemos pensar em Cristo como a substância, a essência, a alma e o escopo de toda a Bíblia.

Quão ricamente os Puritanos aplicavam esse princípio evangélico de exegese só pode ser apreciado por aqueles que escavam os escritos expositivos de autores como Owen, Goodwin e Sibbes.

5 - Interprete as Escrituras de modo experimental e prático. De certo ângulo, a Bíblia é um livro de experiências espirituais, e os Puritanos exploravam essa dimensão com profundidade e discernimento sem rivais. Os temas de O Peregrino servem de índice desse fato — a fé, a dúvida, a tentação, o desespero, o temor, a esperança, a luta contra o pecado, os ataques de Satanás, os cumes da alegria espiritual, os ermos do senso de abandono espiritual. A Bíblia também é um livro prático, dirigindo-se ao homem em sua situação concreta — conforme ele está diante de Deus: culpado, vil e impotente — e dizendo-lhe em que deve crer e o que deve fazer para o bem-estar de sua alma. Os Puritanos reconheciam que essa orientação prática deve ser característica da exposição das Escrituras. As doutrinas devem ser ensinadas do mesmo ponto de vista em que são apresentadas na Bíblia, e devem ser aplicadas com o mesmo propósito ensinado na Bíblia. Owen, conforme vimos, destaca isso ao iniciar sua análise da doutrina da justificação:

Trata-se do direcionamento prático da consciência dos homens, em sua aplicação a Deus, por meio de Jesus Cristo, visando à libertação da maldição devida ao estado de apóstata e à paz com Ele... o manuseio dessa doutrina tem apenas esse desígnio... E apesar de não podermos tratar de modo seguro e útil essa doutrina, senão no que tange às mesmas finalidades para as quais ela foi declarada e para o que ela é aplicada nas Escrituras, não deveríamos... desistir de dar atenção a esse caso, com vistas à sua solução, em todos os nossos discursos sobre o assunto. Pois o nosso dever não é satisfazer a curiosidade sobre noções ou sutilezas das disputas, e, sim, dirigir, satisfazer e conferir paz às consciências dos homens.

A negligência a essa regra, durante a era dos Puritanos, produziu muita irresponsabilidade no manuseio das doutrinas das Sagradas Escrituras; mas os grandes mestres Puritanos observavam-na de modo coerente, e seus escritos, em consequência, eram "práticos e experimentais" (uma expressão que lhes era comum), no melhor e mais edificador sentido.

6 - Interprete as Escrituras com uma aplicação fiel e realista. A aplicação deriva-se da própria Bíblia; assim, a indicação dos "usos" de doutrinas faz parte da obra de exposição bíblica. Interpretar quer dizer tornar as Escrituras significativas e relevantes àqueles a quem o pregador se dirige, e o trabalho não terá terminado enquanto não tiver sido mostrada a relevância da doutrina, "para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça" (2 Tm 3.16). Os "usos" padrões (tipos de aplicação) consistiam no uso de informações, mediante o qual o ponto doutrinário em foco era aplicado e suas implicações eram extraídas, a fim de moldar os juízos e as atitudes dos homens em consonância com a mente de Deus; o uso de exortações, convocando-os à ação; o uso de consolação, em que a doutrina aparecia como resposta às dúvidas e incertezas; o uso de perguntas para auto-exame, uma chamada para aquilatar e medir as condições espirituais da pessoa à luz da doutrina ensinada (talvez as marcas de um homem regenerado, ou a natureza de algum privilégio. ou dever cristãos). A aplicação deve ser realista; o expositor deve notar que a Bíblia dirige-se aos homens, onde eles estiverem. A aplicação feita ontem talvez não corresponda à condição de hoje. "É um zelo barato aquele que clama contra erros antiquados ou coisas que hoje estão fora de uso e de prática. Cumpre-nos considerar o que a época presente requer". Para um expositor fazer uma aplicação da Bíblia de modo relevante, sondador e edificante (em distinção a uma aplicação desajeitada, imprópria ou confusa), sem dúvida está envolvido um trabalho difícil, que requer grande prudência, zelo e meditação; e, para o homem natural e corrupto, isto será recebido como algo desagradável [essa consideração tenta um mensageiro de Deus a poupar os seus golpes, pois nenhum homem normal gosta de ofender ao próximo]; mas o pastor deve esforçar-se para realizar tal obra de modo que seus ouvintes percebam que a Palavra de Deus é viva e poderosa, capaz de discernir os pensamentos e intuitos do coração; e que, se estiver presente alguma pessoa incrédula ou ignorante, ela terá desvendados os segredos de seu coração, dando então glória a Deus.
A fim de aplicar as Escrituras de forma realista, é preciso saber o que se passa na cabeça e no coração do homem; e os Puritanos insistiam que aqueles que quisessem ser expositores precisavam conhecer as pessoas, tanto quanto a Bíblia.

Esses eram os princípios Puritanos na questão da interpretação da Bíblia. Para eles, nenhuma disciplina é tão precisa, nenhum trabalho tão compensador. Não há dúvida que o método deles era saudável; faríamos bem em seguir em suas pisadas, mas para isso precisamos fazer seis perguntas acerca de cada texto que tivermos de expor:

(1)     Que significam realmente estas palavras?

(2)     Qual luz outros textos bíblicos lançam sobre este texto? Onde e como este texto ajusta-se à revelação total da Bíblia?

(3)     Quais verdades este texto ensina sobre Deus e sobre o homem em seu relacionamento com Deus?

(4)     Como essas verdades se relacionam com a obra salvadora de Cristo, e que luz o evangelho de Cristo lança sobre elas?

(5)     Quais experiências essas verdades delineiam, ou explicam, ou buscam criar ou curar? Com qual propósito prático elas figuram na Bíblia?

(6)     Como se aplicam a mim mesmo e a outras pessoas, em nossa própria situação? A que condição humana atual elas se dirigem, e o que elas nos estão dizendo para crermos e fazermos?

J. I. Packer
FONTE: www.josemarbessa.com

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